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O CONSUMIDOR

Luiz Puntel

“ Não andeis, pois, a indagar o que haveis de comer ou beber, e não vos entregueis a inquietações.” (Lucas 12-29)

 


O homem desceu do ônibus urbano. Não andou muito e parou na porta do supermercado, lembrou-se dos empórios e armazéns de secos e molhados, vendas no atacado e no varejo, o que vai ser, dona Maria!

No tempo dele pequeno, na cidadezinha do interior, Sinhá dizia: vai depressa comprar um quilo de feijão e mais um de arroz e vê se anda ligeiro que também quero um dedo de cachaça que é para mode esquentar a goela. Passava a mão na caderneta do armazém e zunia atrás do bote um sorvete também na conta, Seu Gumercindo! O homem do armazém, de avental na cintura e com aqueles óculos-fundo-de-garrafa que era para somar a mais na puxada do saldo. Atendia o moleque dos Souza, um pirralho sem educação que nem pedia faz favor; era me dá isso, bota aí na conta, me dá aquilo e mais aquilo outro.

Desavergonhado, bem feito, era por isso que ele, Gumercindo Antônio das Verdades, carregava na soma.

Estava ali parado, indeciso se entrava ou não. Era engraçado falar supermercado. Não sabia porquê, mas lembrava o super-homem, voando pelo céu da tela do Cine São Jorge.

Muita gente do bairro tinha vindo com ele no ônibus para ver a novidade funcionar, engolir aquele montão de gente e vomitar pacotes bem feitos no agradecemos a preferência, volte sempre.

Acabou entrando com os outros. Dona Viviana, Dona Zazá, Dona Erites, acostumadas a dirigir carrinho de feira das patroas, não fizeram cerimônia; pareciam que nasceram naquilo, todas demonstrando um à-vontade, conhecendo o mecanismo, a engrenagem da coisa. Ficou com receio do povo rir dele. Empurrar carrinho era coisa de mulher barriguda, não de homem barbado.

Seu Ramiro pediu com licença, faz favor e saiu dirigindo um dos bitelos por entre as prateleiras cheias de latas.

Criou coragem. Se Seu Ramiro pega, eu também pego. Pensou em desistir na hora agá, mas o barbudo apressou-lhe os movimentos, pedindo pressa e sai da frente.

Deu passos desajeitados, atrás daquela geringonça, quase atropelando uma velha que vinha na contramão, olhando as latas de palmito, como a vida está cara. Desviou da velha, em tempo de jogá-la em cima dos tomates.

Achou engraçado todos pegarem as coisas, encherem os carrinhos e zanzarem por ali, livres, sem o seu Gumercindo com aquele fundo-de-garrafa tomando conta do mundo, marcando a mais na caderneta do armazém.

Quis fazer o mesmo. Estendendo a mão, pegou uma lata de salsichas. Olhou ressabiado, verificando se o Seu Gumercindo do supermercado não estava ali, certeiro na ponta do lápis. Não, não estava. Pelo jeito, ali não havia nenhum Seu Gumercindo tomando conta.

Quando passou pelas latas de óleo e resolveu investir pela segunda vez, sentiu-se mais à vontade. Da terceira investida em diante não se preocupou mais: Seu Gumercindo era mesmo coisa da infância, uma imagem embaçada, distante do mundo.

Até que não era má ideia. Ali, cada um pegava o que bem entendesse, não precisava ficar pedindo me dá um quilo de feijão e mais um de arroz e também quero um dedo de cachaça que é “pra mode a mãe esquentar a goela.”

Na virada dos volteios com o carrinho, já dono das manobras, esbarrou num amontoado de pacotes de sabão em pó, esquinado num ponto estratégico. Caíram duas caixas, fazendo um barulho fofo. Olhou em volta e foi bom, ninguém viu: ficou sem graça, corando as faces magras. Agachou-se incontinenti e botou as caixas nos lugares, prometendo ter mais cuidado dali para a frente.

No armazém do Seu Gumercindo, quando ele negava doces e balas, dizendo que eram ordens da mãe para não dar mais nada ao moleque, ele gostava de puxar a lata de baixo, despencando tudo, inclusive a ira de Seu Gumercindo.

Entrou na seção de cosméticos e levou um susto: uma mulher de biquíni e sorriso malicioso na boca cortou sua frente, sorrindo maldade e safadeza na foto tamanho natural. Ela segurava um sabonete na mão, oferecendo. Ele, inibido pelo oferecimento gratuito e querendo mostrar naturalidade, pegou dois ou três iguais aos da moça.

Aquele corpão ali pertinho dele, todo à mostra, bronzeado de sol, cheirando a mulher bonita e bem diferente do cheiro de bacalhau do armazém do Seu Gumercindo.

Ficou fazendo onda, sem arredar de perto da moça de biquíni, indeciso entre um desodorante e uma pasta de dentes, mas com o rabo de olho naquele mundo de pecado.

Acabou levando o desodorante, duas pastas de dentes, um xampu para cabelos secos, outro para cabelos oleosos, se bem que não ia adiantar porque o dele era pixaim...

Cigarros. Taí uma coisa que o homem ia esquecendo. No boteco do Seu Gumercindo era vendido picado. O primeiro que ele fumou foi um Picadilly. Quase morreu de tanto tossir. Sinhá proibiu os banhos no rio, dizendo que ia acabar pegando tuberculose. Ele se arrependeu amargamente, prometendo ao menino Jesus que nunca mais, nunca mais mesmo pegava naquela porcaria. Semana seguinte estava de Fulgor na boca.

Pois, ele, um ex-fumador de estora-peito, um contumaz fumante de simidão, precisava desfrutar daquela oportunidade. Ficou indeciso entre o Continental e o Vila Rica. Os outros eram frescuras de americano, uns cigarros de bicha.

Aí deu o Gérson na dividida e depois ele foi craque da seleção e a seleção estava no sangue dos noventa milhões em ação, pra frente Brasil, salve a seleção. Bola com Gérson, dribla um, passa pelo segundo, vai levando a redonda, finta um terceiro, eu não quero nem  ver, torcida brasileira, e faz que via mas não vai, dribla o beque, está cara a cara com o goleiro, pode sair o gol, escolhe o canto e é gooooolllllll, encaçapa um maço de cigarro no bolso esquerdo da camisa verde e amarela do homem que sai empurrando o carrinho.

E porque não uma cachaça!

Vai depressa comprar um quilo de feijão e mais um de arroz e vê se anda ligeiro que também quero um dedo de cachaça que é para “mode esquentar a goela”. E Seu Gumercindo mediu dois dedos de cachaça, apertando os dedos, vendendo picado, anotando na caderneta.

Podia escolher qualquer uma. Tinha de todo tipo e qualidade: da branquinha, da amarela, da bem curtida, da mais vagabunda, das americanas, das da estranja, de todo lugar. Escolheu uma de nome vísqui, visquei, uísqui, eu sei lá falar inglês!

Carrinho lotado, o jeito é um só: dirigir-se para as registradoras, que engolem as compras e vomitam números em forma de cifrão. Estaciona o carrinho atrás de gordas felinescas e finge um ar de que esqueceu o talão de cheque no carro, ou de quem está apertado para fazer xixi, sai de fininho. Na rua fica imaginando e rindo da cara que o gerente vai fazer quando, terminado o expediente, ver o carrinho sem dono, lotado, esquecido na boca da caixa registradora número sete. Ele, morador da favela do lixão, sem um tostão no bolso, morre de rir. (Puntel, Luiz. Não aguento mais esse regime. Editora Ática)

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